Um Pequeno Memorex Musical

 

UM PEQUENO MEMOREX MUSICAL

Nessa quarentena forçada, ouço muita música e penso nela. Nas formas mecânicas como chegam a nós, ora em telefones celulares, outrora em trambolhos. Eu era garoto e mesmo antes de ter meus três primeiros discos, comprados quando na 5ª série, ouvia em casa a vitrola Grundig que meu pai trouxe dos EUA em 1961. Muitos dos discos eram clássicos, outros contemporâneos. Meu tio João tocava violino em sua casa, segundo meu pai (eu nunca vi), e sempre vinha um amigo da família, Naninho, que tirava da bolsa um trompete e tocava escalas clássicas. Eu ficava apavorado com o ruído ensurdecedor daquele instrumento, e me escondia no quarto. Eu me lembro perfeitamente de Dvorak, Janacek e do cânone, como Bach e Mozart. Mais das capas do que da música em si. E na minha casa havia um piano. Minha irmã Isabel teve aulas, e eu sempre pedia pra tocar. Ela se lembrava apenas de uma peça de Chopin. Uma passagem que ainda não consegui achar em gravações, nem sei o nome. Mas a melodia está inexoravelmente esculpida na mente.

Eu achava muito chata a música tradicional. Mas, como disse, algumas melodias fincaram sulcos nos ouvidos com a repetição. Como sou temporão, minhas irmãs eram cocotas dos anos 60 (naquela época não havia a expressão, mas define bem o que eram). Elas tinham compactos em 45 e 33 rpms. Na vitrola mudávamos a rotação, e tinha inclusive a opção 16 e 78 rpms, para aquelas primeiras bolachas que pesavam uma tonelada. Essas eram quase todas clássicas, e eu as tinha até pouco tempo na casa do Vale. Na de 45, era necessário colocar o toco adaptador no meio, pois a bitola é maior. Me lembro do meu compacto favorito de uma das irmãs, “Judy in Disguise”, com o melhor nome de banda de todos os tempos. John Fred and his Playboys. Nunca me esqueço desse nome. Ou do compacto. Eu ouvia umas dez vezes seguidas, enlouquecendo minha mãe. Meus irmãos não paravam em casa, então manuseava tudo, sem maiores consequências. Como eu era o bebê, inclusive deixavam ouvir quando estavam por perto. Meu irmão tinha disco do Miles Davis, John Mayall, Pixinguinha e Tom Jobim. Que me lembre. Minha outra irmã, muita MPB. Discos seminais do Chico, Caetano e Jorge Ben. Por isso sabia muitas letras de cor. Isso de pirralho. Devia ter entre 6 e 8 anos. MPB era o que mais se ouvia, pois meu pai já preferia a morte por televisão. (Mas ainda vive e nunca mais ouviu ou ouve música. Acho que toca muito fundo em memórias, e prefere não remexer as águas)

No carro, a caminho da escola, era tempo da Rádio Mundial AM e Big Boy. E da Ave Maria em cadeia às seis em ponto. Eu ia sentado na frente do fusquinha, sem cinto, minha irmã dirigindo, e ainda me deixava girar o dial. FM veio depois. E em casa, apesar dos discos, ouvia-se muito rádio. Fora a música, adorava ouvir as rádios estrangeiras em ondas curtas em casa. Meu pai ensinou que devíamos tentar tarde da noite para reduzir a estática e consequente chiado, pois as frequências estavam mais silenciosas e abertas. (Excesso de gente sempre foi um problema). Eram noticiários em idiomas que desconhecia, mas meu pai ia traduzindo. E por isso, com a questão da rádio pop no fim dos anos 60, e começo dos 70, a música negra americana exercia um fascínio especial. Mas não tinha ideia a respeito dos artistas. Todos ao redor cantavam muita “embromation”. E aí, antes da conversão, na quinta série, a pergunta entre amigos do prédio era se gostava de pop ou rock. Eu, ouvindo toda a enxurrada de Motown no rádio, cravava pop.

Mas na quinta série, reafirmo, algo aconteceu. Veio o meteoro. Todas as forças convergiram para tornar o rock algo que moldou toda a vida. Começamos a falar de rock, amigos do colégio. E queria ter meus próprios discos. Pedi e ganhei 3 de cara. Sabbath Bloody Sabbath do Black Sabbath, Burn do Deep Purple, e Journey to the Center of the Earth do Rick Wakeman. O quarto foi o Wish you Were Here do Pink Floyd.Eu me lembro de ter escutado antes o Dark Side of the Moon, e o achei incompreensível e muito louco, como o disco do Miles Davis do meu irmão. Curioso gostar inicialmente do rock bem cartesiano do Deep Purple. Minha mãe, católica fervorosa de novenas e missa, nem percebeu a capa do Black Sabbath, que já dava muita bandeira. Com o passar dos anos, tornou-se necessário ouvir música absolutamente fora da curva. Naquele tempo a música negra americana foi tomada pela música disco, muito vilipendiada. E eu queria mais LP de rock, de forma insaciável. Eu me lembro da raiva do meu pai, eu já adolescente, buscando alguns discos clássicos que “tinham sumido”. Eu era culpado. Trocava no sebo por discos de rock. Em doses e gotas homeopáticas, evitando ser pego, mas sem sucesso, no final. Ele voltou a viajar ao exterior a trabalho, depois de um hiato, a partir de 1978, e fui me enchendo de bolachas importadas, com uma sonoridade muito melhor.

A partir daí, foi uma loucura e a música era tudo que me interessava, junto ao futebol de campo e de botão, obviamente. E aqui chego ao cerne do que quero falar com isso tudo. As fitas cassete. E o seu papel em tornar o ouvinte um autor. Antes de DJ fazer música, o advento da fita cassete nos tornou produtores musicais e autores de mixes que até hoje não largam minha cabeça. Eu fui “compositor” de fitas iniciais, nessa época, quando apertava o play no gravador compacto de cassete com a mão esquerda, dois dedos bem abertos, “play and record” ao tempo, enquanto a outra mão baixava o braço do toca-discos. Eu tinha aquele gravador, também toca-fitas, compacto, encasulado em couro, e com um botão ora vermelho para gravar, ora azul para tocar. Com brancos possibilitando rebobinar para frente, para trás e um para a pausa. Nos EUA, esses gravadores são conhecidos como “shoebox cassette player”. A gravação era como num estúdio. Se um amigo ao lado se mexesse, era esporro. Não podia falar, respirar ou rir, senão tinha que repetir tudo de novo. Eu ganhei o gravador e uma vitrola Philips compacta, somente minha, e abandonei a Grundig no outro quarto-escritório.

Claro que, logo em seguida, muitos amigos passaram a ter 3 em 1, ou os sistemas com amplificadores e receivers. E foi o fim das sessões de gravar no ar, nas coxas. E ainda assim as fitas cassete autorais permitiam conhecer milhares de novas bandas e artistas. O meu pai também tinha gravador de rolo Wollensak. Mas esse era completamente fora de acesso. Meu irmão levava escondido para o botequim, e gravava todo mundo de porre cantando “Make Love not War”… Eu ficava ouvindo fascinado. Mas gerou um problema enorme, parece que com a polícia e a repressão. Portanto o belo Wollensak sempre foi tabu em casa.

Bom, muitos amigos foram fundamentais no início, e na troca de informação, mas destacaria Aloisio e Guilherme. Inclusive, Aloisio gravou alguns mixes que ficaram na minha cabeça. Por exemplo, no meu ordenamento mental, “Fim do Mês” do Raul Seixas é seguida por “Sylvia” do Focus e “Lilywhite Lilith” do Genesis. E essa era interrompida no meio da canção, pois estava numa fita TDK 60, curta para prog. O default para mim era cromo 90 (120 era fina e não durava muito), e Basf, somente alemã, não a nacional. A Memorex era boa inicialmente, mas foi perdendo a qualidade com o passar do tempo.

Eu não ouvia muito esse LP (Lamb Lies Down on Broadway). Portanto essa canção (Lilywhite Lilith) era ceifada ao meio e era curta, ao meu entender. Somente anos depois comprei o CD e ouvi o colosso de cabo a rabo. Mas o que ficou foi a versão cotó da fita cassete. Mesmo sendo autoral no CD, você raramente esquartejava as músicas, e não usava mixers analógicos, que eram sensacionais para música de dançar.  Adoro muitas canções tetraplégicas no meu ouvido. Sem perna, braço ou cabeça, tipo Garota, Interrompida. Resultado direto da fita cassete. Eu tenho mil canções assim, uma ABBR na minha cabeça. Todas amputadas.

Sempre toquei violão de forma mais bissexta. O fato de ter tido aula ajuda a entender música. E de ter aprendido muito cedo. Bem como aula de percussão com Guilherme depois, e minha tentativa ainda infrutífera de tocar um teclado (já consigo o início de Imagine). Eu de tudo me desfiz: milhares de CDs, guitarra, violão, baixo, amplificador, pedal, e vinis. Tento andar o mais leve possível e falta mais um pouco. Mantive um violão que carrego comigo. Em termos de shows, posso morrer hoje. Eu vi tudo o que gostaria e sou grato ao Bom Senhor, pois nada me falta. Desde aqueles começos na Zona Sul e Centro do Rio, vendo coisas incríveis, aos shows mais apoteóticos em vários outros lugares do mundo.

O tempo passou, mudei eu, o Natal, e tudo ao redor. Abracei o jazz como um facínora famigerado e ainda ouço um bom bocado. Lia os testes cegos da Downbeat, era assinante, e tentava imitar com meu amigo Efrain. De uns anos para cá, como bem revela a leitura de “Do Rock ao Clássico” de Arthur Dapieve (que tem exatamente a minha idade, e é a pessoa com quem mais troco figurinhas musicais), fomos sendo tragados para as salas de concerto, para audições mais apuradas, e para continuar um aprendizado de vida. Estamos aprendendo dos que vieram antes de nós em relação à música clássica. Essa imersão torna extremamente difícil a tarefa de digerir o cancioneiro popular de modo geral. Eu, de todo modo, não poderia ir num show de música em que tivesse que ficar de pé. Uma impossibilidade física. Além de que uma orquestra hoje em dia tem o efeito que os show do Yes e Genesis tinham nos anos 80, quando morava fora e a acústica era boa para os padrões da época se comparada a shows aqui no Brasil. A única coisa que deve ser feita é ouvir, ouvir e ouvir.

Eu mantive alguns discos de vinil, e não mais os cassetes. Confesso que em casa em SP sintonizo o meu Gradiente na Rádio Cultura o dia inteiro. O Marantz foi carcomido pela maresia carioca, então comprei esse com 32 anos de idade de um único dono no norte de MG, longe da praia. Eu ouço os vinis amiúde. E ouço meus CDs cada vez menos. Como a maioria, ouço muito o Spotify do meu telefone e criei já alguns playlists. Fique a vontade para xeretar. A música, se você mergulhar no sacerdócio e se dedicar, não importa qual estilo ou gênero, mata até a fome física. Nessa quarentena, tente ouvir mais música e ver menos TV. Se der para forçar um Bach ou Mahler no mix, está super de boa também. Não custa nada. E a pressão arterial e o sistema de imunodefesa agradecem.